terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O palhaço



Dirigido por Selton Mello, O palhaço evidencia uma construção narrativa em que nenhum detalhe é casual. Do início ao desfecho da história, detalhes como o lápis nas mãos de Benjamin (Selton Mello), a espada manipulada por Lola (Giselle Motta) e a estátua do santo protetor dos artistas – não, não direi o nome do patrono, olhe o filme... – participam da narração. Frequentemente focalizados pela câmera, ora em detalhe, ora nas mãos de um dos personagens, esses elementos relacionam-se tanto ao universo da ficção quanto ao trabalho do ator. Se na ficção tudo o que for verossímil cabe, a atuação requer a habilidade de usar todo o elemento capaz de compor o personagem para aquela narrativa, para aquele filme. Assim, a espada que fascina também corta, e o lápis escreve a estória, ainda que o mote do gracejo oralmente construído esteja em primeiro plano.
Outro aspecto que chama a atenção é a homenagem ao artista circense, em especial ao palhaço. A dupla Pangaré e Puro Sangue, composta respectivamente por Benjamin e Valdemar (Paulo José), recupera tanto a tradição do palhaço de circo como a do clown. A crise de identidade marcada no apelido Pangaré faz parte da vida de Benjamin. Mais do que ter uma carteira de identidade, ele precisa reconhecer seu lugar no mundo, fora ou debaixo da lona do circo.
A câmera trabalha de modo a endossar a homenagem inscrita nos personagens. Muitas são as cenas em que a narrativa fílmica procura recriar a situação dialógica entre palco e platéia. Um exemplo é a situação em que o delegado (Moacir Franco) tem a sua frente parte da trupe circense, presa por provocar briga dentro de um estabelecimento comercial. A câmera vai da figura do delegado aos temerosos artistas, todos em silêncio, ouvintes atentos do discurso do delegado – aliás, porque são bons entendedores, estão logo soltos. Situação bem diferente é a que ocorre quando Benjamin escuta as histórias de seu patrão (Sérgio Loredo). Sentados em uma mesa, um grupo ouve as piadas contadas de modo animado. Do contador, a câmera passa a um meio plano em Benjamin: ele ri com prazer. Em sua busca, o filho de Valdemar redescobre o prazer de rir de uma piada bem interpretada. Segundo Felipe Branco Cruz, o ator, diretor, roteirista e montador, no que diz respeito ao modo de filmar, declarou: “É inevitável a referência a Fellini. Ele filmou, de forma definitiva, o teatro”.
A participação de atores como Paulo José, Moacyr Franco, Sérgio Loredo (o Zé Bonitinho) e Luiz Pereira Neto (o Ferrugem) funciona como uma homenagem a grandes atores, em particular, à arte da comédia. Nessa linha, Selton já afirmou seu carinho pelos Trapalhões e por Didi, “nosso Charles Chaplin”. Desse modo O palhaço, além de um ótimo filme, homenageia grandes nomes do cinema e da comédia.


Para quem quiser ler alguns poemas para conhecer o palhaço e o clown na literatura brasileira, ficam as dicas:

Poética
(Manuel Bandeira)

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
 
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Estes poemas belíssimos, de Manuel Bandeira — Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, fone (021)286.78.22, Brasil — foram inspiração (e homenagem a ele) para Soares Feitosa, "in" Do Belo-Belo.


Acrobata da Dor
(Cruz e Sousa)

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

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